Impulsos

Para desatar nó (em pingo d’água)

By Setembro 9, 2020 No Comments

Entro num auditório com centenas de pessoas, a maioria não se conhece. Estão sentadas em filas, olhando para mim, esperando o que eu tenho para dizer. Após algumas palavras de apresentação, inverto a expectativa: peço que se apresentem às pessoas do lado. Alguns segundos de risos nervosos e silêncio constrangedor se passam; algumas pessoas quebram a barreira do desconforto e começam a se apresentar, imagino que com perguntas básicas, tipo o nome, de onde veio, com o que trabalha, etc. Em poucos segundos o auditório, antes silencioso, é tomado pelo burburinho, que vai aumentando à medida que as pessoas precisam falar mais alto para se escutarem. Deixo o tempo passar… um, dois, três minutos; a diferença no nível de ruído é literalmente ‘gritante’. Elas se esquecem do palestrante e do evento, parecem estar mais interessadas em falar e ser ouvidas. Quando peço silêncio para retomar minha fala, de início não me escutam; algumas pessoas notam que algo pede sua atenção e, após um tempo, como uma chuva que passa aos poucos, as falas diminuem e consigo silêncio para prosseguir. 

Já vi essa cena se repetir muitas vezes, ora sendo aquele que “destampa a pressão”, pedindo às pessoas que se comuniquem umas com as outras, ora na posição de, com certo desconforto, ser levado a falar com estranhos. Essas experiências me trouxeram algumas percepções sobre a natureza da conversa. Primeiramente, somos ‘seres verbais’: precisamos falar e precisamos ser ouvidos. É uma necessidade básica, diria até vital. Me lembro do filme Náufrago, em que Chuck, o personagem de Tom Hanks, isolado numa ilha, talvez para não perder a sanidade, passa a conversar com uma bola de vôlei, o personagem Wilson, com quem desenvolve interessantes diálogos e, com o tempo, um vínculo e uma amizade, dolorosamente desfeita quando Wilson cai da embarcação e se perde no mar enquanto o náufrago tenta sair da ilha. Precisamos nos expressar através da fala (voz, sinais ou escrita) – e precisamos ser ouvidos e vistos/ reconhecidos também.

Em segundo lugar, sinto que vivemos muito dentro de nossas cabeças e, em geral, atraímos e nos cercamos de quem pensa parecido conosco, pois é mais cômodo. Dessa forma, e talvez inconscientemente, tornamos os desconhecidos potenciais ameaças a esse conforto pré estabelecido e tememos encontrar visões de mundo muito diferentes das nossas. Ainda que compreensível e em certa medida aceitável, veremos que essa tendência cria uma barreira ao nosso redor, nos afastando uns dos outros enquanto seres humanos que precisam coexistir e se relacionar num mundo cada vez mais populoso e conectado.

‘Conflitofobia’

Essas duas constatações encontram eco quando olhamos mais atentamente para a  forma como nossa sociedade lida com o conflito hoje. A profusão de manifestações de opiniões, gostos e estilos de vida nas mídias sociais por exemplo, revela o quanto precisamos nos expressar e ‘falar’ de nós mesmos, ao mesmo tempo que escancara o quanto sentimos carência e necessidade de sermos “curtidos”, vistos e escutados. Enquanto o mundo virtual se enriquece com nossas certezas e com os embates que travamos ao redor delas – bem como com os ‘likes’ e ‘dislikes’ que damos e recebemos – o mundo real se empobrece de contato humano, à medida que nos unimos mais aos nossos semelhantes e tornamos os conflitos tabus, territórios inóspitos que evitamos a todo custo visitar e, quando visitamos, o fazemos à flor da pele e, não raro, com violência. 

As organizações, por sua vez, são câmaras de ressonância das questões vividas, de forma mais ampla, pela sociedade. O tribalismo e as ‘panelinhas’ já são questões no radar de consultorias organizacionais e no vocabulário do RH, pois afetam não apenas o clima mas também a produtividade das empresas. Felizmente tenho notícias de pessoas que, com influência e acesso a recursos dentro de suas organizações, decidiram investir na criação de espaços seguros para conversas francas com suas equipes, com ajuda de consultores e facilitadores experientes; e por conta dessa coragem e ousadia, puderam encontrar a humanidade – o afeto, o respeito, a confiança, a escuta – perdida em meio ao jogo de dominação, culpa, punição e violência invisível de que tantas vezes está feito o âmbito das organizações.

O sufoco da fofoca

No último encontro com os participantes do Curso Diálogo & Facilitação conversamos, entre outros assuntos, sobre o desafio de lidar com a fofoca e o ‘disse-me-disse’ no ambiente de trabalho. Como consultor eu ouço muitos relatos sobre como a competição, a disputa de poder, a falta de transparência, a manipulação e a dissimulação, bem como as dificuldades de estabelecer conversas francas são comuns no mundo corporativo.

Acredito que apontar ou culpar fulano ou sicrana por ser “muito fofoqueira(o)” reduz a questão; embora existam pessoas mais suscetíveis a falar mais sobre as outras, a fofoca, quando se torna um problema, já diz respeito a uma questão sistêmica, relacionada com a cultura da organização. Nas próximas linhas espero poder oferecer luz sobre as origens e os possíveis caminhos para recuperar a confiança que a fofoca costuma ameaçar especialmente no, mas não restrito ao, ambiente de trabalho.

Água que brota da fonte

A metáfora que encontrei para descrever o fenômeno da fofoca, enquanto consultor de uma grande organização – onde parece que esse fenômeno atinge proporções assustadoras – foi que a informação se comporta tal como a água. Sabemos que a água é um elemento cuja natureza é circular, a exemplo do ciclo da água ou das correntes marítimas. Quando aprisionada, digamos numa poça ou caixa d´água, privada da circulação e consequentemente da oxigenação, a água apodrece, passa a exalar cheiro desagradável, e deixa de ser potável.

Agora imagine que, assim como a água, a informação verdadeira, de qualidade – que carrega fatos relevantes para o funcionamento de uma organização – precise circular. E que quando represada, estacionada, ela enche um reservatório imaginário que em algum momento começará a vazar, fazendo com que a informação, já desatualizada (e ‘mal-cheirosa’) escorra pelos cantos, fora das vias principais. Assim nasce a fofoca. Ao circular ‘por fora’, a informação carrega muitas vezes o ranço de quem a criou ou repassou, adquirindo carga emocional conforme é passada adiante. Se olharmos a organização como um grande organismo, o que ocorre é que a qualidade geral da água que circula por dentro dela piora, afetando o humor geral das pessoas, predispondo conflitos, desgastes e lapidando um bem intangível porém precioso para toda e qualquer organização: a confiança entre as pessoas. Em outras palavras, a organização pode ‘adoecer’ e a fofoca não é a causa, mas um sintoma de que água limpa e oxigenada, ou seja, a informação verdadeira e relevante, precisa voltar a circular.

Caminhante, não há caminho...

Não é fácil lidar com problemas sistêmicos, ainda mais quando somos parte do sistema em questão. Percebê-los, porém, é o primeiro – e grande – passo. Não ceder a esses problemas, como se fossem algo normal, pensando “sempre foi assim, não sou eu quem vai mudar isso agora”, é o próximo desafio. A maioria das pessoas, principalmente as que ocupam posições mais baixas na escada hierárquica das organizações, para por aqui; afinal, por que arriscar perder o emprego por um problema que é muito maior do que alguém sozinho poderia combater? Apesar de lógica, essa reflexão carece de certos elementos: a conexão e o contato, os mesmos elementos que criaram o elo forte entre Chuck e Wilson; os mesmos elementos que buscavam caminho para circular livremente naquele auditório, em que o ruído das falas fez as pessoas se lembrarem que, mais do que ouvir, elas gostam – e precisam – falar e ser escutadas.

Me lembro da fala de um morador e líder comunitário de uma localidade atingida por uma barragem, muito sábio, que, ao ser questionado por uma jornalista sobre como iria responder a um poder tão grande quanto aquele das empresas e dos políticos que haviam transformado seu lugar numa represa, respondeu: “devagar, a gente junta um, logo outro, depois mais um e outro, e outro mais… tá entendendo, minha filha?”. 

O caminho da regeneração, da reconstrução é lento e coletivo. Começamos não por tentar mudar o sistema como um todo: isso não é possível nem desejável; mas por observar primeiro, sem querer intervir (haja paciência, eu sei), e depois oferecer ao sistema, às pessoas, aquilo de que sentimos falta. Se o ambiente carece de informações relevantes, precisamos criar encontros em que seja possível falar de forma transparente e com confidencialidade; se há conflitos, é preciso criar espaços para conversar, com respeito e maturidade, sobre questões sensíveis. Em ambos os casos, um facilitador com experiência em diálogo e conversas difíceis é de grande ajuda. 

Esse investimento de tempo e de recursos direcionado ao maior ativo das organizações, as pessoas, pode não apenas melhorar as relações e o clima no ambiente de trabalho, mas desimpedir o fluxo para que volte a acontecer o que é essencial – o que significa menos desgastes e mais produtividade. 

Conflitos são inevitáveis – somos muito diversos, e isso é bom; o que é decisivo, contudo, é como resolvemos lidar com eles. Se esvaziarmos o terreno do conflito, que é o mesmo terreno da harmonia; se recuarmos diante do chamado para construirmos sobre – e apesar – das nossas diferenças; se cedermos à tentação de habitar um mundo ilusório de bolhas isoladas, não perderemos, mas deixaremos dormente nosso potencial de refazer e regenerar os vínculos esgarçados pela nossa impaciência, avidez e preguiça. Precisamos recriar o lugar de potência do contato e da conexão humana; um a um, conversando primeiro com quem temos mais familiaridade, depois ir estendendo aos poucos essa familiaridade, essa conexão e empatia a outras pessoas, que talvez pensem diferente de nós. 

Assim, o caminho pode se abrir diante de nós. Nos resta caminhar juntos.

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