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Páginas Matinais

By Julho 21, 2020 No Comments

Nesta seção irei compartilhar atividades que fazem parte do repertório dos praticantes da “prática social reflexiva”. 

Todo dia cumpríamos o mesmo ritual: acordar, tomar café juntos e, antes do início das atividades, ler uma ‘poesia meditativa’ – sempre a mesma – e na sequência, caderno e caneta em mãos, partíamos para as tais ‘morning pages’, ou páginas matinais. A primeira sensação era o desconforto: a mente acostumada a expressar significados, encadear ideias e preparar argumentos era desarmada – “só escreva, o que estiver no fluxo do pensamento”.
‘Mas como?! Não faz sentido nenhum, pra que vai servir esse texto?’. Os dez minutos, no entanto, voavam. ‘Como assim, já acabou? Preciso de mais tempo!’. Inquietação, desapego, presença, silêncio, sossego… tudo dentro de algumas páginas, feitas a partir de um convite aparentemente despretensioso: deixar fluir a escrita, ir registrando o que estiver passando na tela mental, não embarcar na elaboração das ideias, apenas anotar.

Conheci essa prática há mais ou menos 7 anos, quando participei da 2ª edição do Programa Artistas do Invisível, e de lá pra cá passei a cultivá-la como hábito, ora mais, ora menos disciplinado. Descobri através dela a importância do encontro solitário com minhas próprias ideias, tanto para minha vida pessoal como para minha prática como consultor/ facilitador/ educador. As páginas matinais me desafiaram – e até hoje desafiam – a deixar para trás padrões arraigados, como se apegar às próprias ideias, dar muita importância ao que se pensa e sente, e valorizar demais nossa capacidade intelectual de organizar e produzir sentido.

Além disso, sentia que essa prática, no contexto do programa – feita em silêncio por cada um, em roda, diariamente – tinha a capacidade de despertar o grupo para o trabalho que nos mobilizava a estar ali; era o ‘aquecimento das turbinas’ que nos permitia alçar voos coletivos, pois abria entre nós, os participantes, espaço para conversas mais afinadas e partilhas mais atentas. Era como se essa ‘higiene mental’ nos tornasse mais atentos ao que se passava ao nosso redor, às sutilezas nas falas dos colegas e dos facilitadores, e também ao que se passava dentro de nós enquanto falávamos e ouvíamos. A partir desse ‘espaço liberado’ era possível reparar uma nova e original dimensão de observação, que surgia no íntimo de cada indivíduo mas se projetava para o corpo social do grupo como um todo.

O exercício

A proposta deste exercício é escrever à mão num caderno o que está acontecendo em nosso fluxo de pensamento: “Ah, mais uma manhã, daqui a pouco preciso ir cuidar do café, nossa, que sonho estranho eu tive, será que vai dar tempo de lavar a roupa, blá, blá, blá…”. Devemos colocar no papel tudo e qualquer coisa que vier à mente, sem filtro, sem precisar fazer sentido, sem precisar parecer inteligente, sem que seja preciso mostrar pra ninguém.

Faça isso durante aproximadamente 10 minutos, diariamente, pela manhã.

Eu gosto de escrever logo quando acordo, pois a mente sonolenta está menos apta a racionalizar, mas é importante que você encontre um momento adequado, de preferência antes do turbilhão dos afazeres do dia.

Também conhecido por outros nomes como dreno cerebral (brain drain) ou escrita em cachoeira (freefall writing), as páginas matinais propõem um gesto que, por não buscar um resultado específico imediato, nos dão uma liberdade imensa, difícil inclusive de lidar, pelo menos no início. Se praticado diariamente por um tempo, essa prática pode nos ajudar a organizar as ideias, fazer uma “faxina” mental e nos familiarizar com o ato criativo – naturalmente incompleto, imperfeito, bruto, mas fiel ao que estamos vivendo e sentindo no momento presente.

Dificuldades e desdobramentos

A simplicidade desse exercício foi arrebatadora para meus hábitos ‘intelectualizantes’; sem perceber eu frequentemente parava para pensar o que ia escrever, para logo me atirar novamente e me entregar ao convite do exercício, de suspender a razão e o julgamento. É natural sentir essa dificuldade, por isso é inútil tentar combatê-la; ao invés disso, se permita oscilar entre esses estados de fluxo e de pensamento racional, buscando sustentar por cada vez mais tempo a entrega ao papel. Com o tempo a atividade passa a ser relaxante e prazerosa, embora a sensação de estar fazendo algo sem sentido e, portanto, inútil, possa lhe fazer visitas frequentes.

A frequência e a constância das páginas matinais talvez sejam os maiores desafios para quem está começando. Aqui é importante primeiro decidir qual sua intenção ao começá-la; não há contraindicação, mas é importante recordar que a prática é apenas um meio para uma finalidade maior e, essa sim, precisa estar clara. Quando indico essa prática para meus alunos ou participantes de um curso de facilitação ou desenvolvimento, geralmente faço referência ao aperfeiçoamento de uma habilidade de escuta interna e de uma sensibilidade maior que permite intervir com mais precisão nas situações sociais. 

Esta prática também está associada ao desenvolvimento de uma maior criatividade e também pode ser usada pontualmente, em aulas ou oficinas. No entanto, como acontece com qualquer prática, sabemos que é a constância e a regularidade que favorecem o aperfeiçoamento. No início é importante se desafiar a fazer esse exercício por pelo menos uma semana, todos os dias. Aos poucos, desafie-se a períodos maiores; talvez passe a sentir, depois de um tempo, necessidade de escrever. 

No contexto do programa que comentei acima, a prática das páginas matinais era tanto um alento – pois me permitia todo dia um momento a sós, em silêncio – como um desafio, pois me colocava de frente com minhas próprias questões, não importando quão relevantes ou triviais fossem. Ao levar essa prática para casa, notei que algumas questões de cunho íntimo pediam que eu as visitasse em outro momento. 

As páginas matinais então me abriram para a importância da escrita como atividade reflexiva: reparar na raiva que senti numa determinada situação, no medo de me abrir para um colega, na vergonha de um pensamento inadequado que me atravessou, na alegria de um reconhecimento inesperado… Olhar para os processos internos sem buscar reduzi-los ou julgá-los é uma forma de trabalho sobre si, e ajuda a nos conhecer melhor e a despertar a consciência das nossas próprias reações – capacidade fundamental para quem trabalha no contexto social, ou seja, com outras pessoas.

Se você já tem essa prática, se começou e parou ou se começar agora e quiser trocar comigo, só mandar uma mensagem por aqui.